terça-feira, 17 de novembro de 2009

A CONSPIRAÇÃO FRANCISCANA E OUTRAS CONSPIRAÇÕES

Fui sisudamente interpelado sobre o tema da conspiração franciscana. Nunca imaginei que nós, os Irmãos Menores de diferentes capuzes, seriamos capazes de tal patacoada. Nós, conspiradores?!
Os estigmas de Francisco de Assis, o que são? A resposta dele morreu com ele. Más, podemos especular, ou, se assim desejarem os vendedores de livros, conspirar.
Francisco é santo por estigmatizado ou estigmatizado por ser santo? Santidade por capricho de Deus ou por serviço aos hansenianos? No caso de ter contraído hanseníase e haver sido chagado por ela, diminui em algo o seu ser chagado e o seu ser Santo? Onde reside o mérito das chagas? Nas chagas mesmas ou em outro lugar? As chagas são um milagre? Qual é a diferença entre milagre, magia, mágica e conspiração?
O milagre evangélico do serviço desinteressado ao outro chagou Francisco de Assis. Como isso aconteceu? Esse é o tipo de pergunta de quem gosta de novela e de conspiração para vender relíquias e livros sobre conspiração.
A pergunta correta é: como faço para servir aos outros desinteressadamente? Servir desinteressadamente aos outros não é milagre nem obra de caridade nem conspiração, é critério evangélico para inscrever ou não nomes no livro da vida.
Não se trata de evitar ou de ter uma opinião crítica em relação à ficção, mas sim, ter uma convicção profunda, sólida e bem trabalhada em relação aos propósitos evangélicos da própria vida.
Se uma novela de ficção é capaz de comover as convicções profundas, então, na verdade, essas convicções não mais que novela e ficção.
Qual era mesmo a conspiração?

quarta-feira, 22 de abril de 2009

A graça das gerações: conflito ou diálogo? Parte II

A queixa sobre os famosos conflitos de gerações é um discurso a mais. Discursamos bravamente sobre tudo aquilo que não queremos enfrentar como realidade, seja própria ou alheia. A verborréia exorciza, ainda que temporariamente, as demoníacas ameaças à minha comodidade.
A fuga discursiva da realidade pode se dar por medo, por ignorância, por conveniência, etc. O medo faz coisas conosco, principalmente o medo de que nossa verdade apareça. A ignorância é o sacramento que mais salva: há quem ainda não descobriu que tem uma realidade própria que pode ser enfrentada e trabalhada na liberdade. Também haverá quem prefira se resolver estrategicamente na ambigüidade.
Naquele famoso encontro, supostamente conflitivo, entre Francisco, Bernadone e o Bispo, a atitude de Francisco é muito clara. Não tem nada para esconder, nem de si mesmo nem dos outros: se desnuda e se deixa ver, diante disso o Bispo o acolhe e Bernadone, aquele se queixava de um conflito geracional com a irresponsabilidade do filho, desaparece sem deixar rasto nas biografias. A transparência espanta os fantasmas que habitam o nosso imaginário.
A relação de Francisco com a Igreja estava muito clara para Francisco, mas não para a Igreja. Sim, sempre obedientes aos pés da Santa Igreja Romana, mas, a Regra Monástica? Essa não, muito obrigado! Francisco sabia com claridade a que havia vindo; isso lhe permitia ocupar bem o seu lugar, tanto no espaço eclesial quanto no espaço temporal e geracional.
Francisco soube ocupar bem o seu lugar: no espaço físico (em relação com a natureza), no espaço institucional (em relação à Igreja, à sociedade e aos governantes), no espaço simbólico (em relação à tradição), no espaço transcendente (em relação ao seu chamado vocacional), no espaço afetivo (em relação ao feminino e ao masculino), etc. Por saber ocupar bem seu lugar sua presença era sempre um chamado a reconciliação, isto é, a que cada um ocupe o seu lugar.
O tempo não passa, ele nos consome: krónos devora os seus filhos. Ser consumido pelo tempo é algo inevitável. Existem duas maneiras de enfrentar este destino cruel: com ou sem dignidade. Quem sabe ocupar bem o seu lugar no tempo e no espaço, diante de si mesmo, diante das outras pessoas e instituições e diante de Deus, envelhecerá e morrerá com o brilho da eterna juventude. No final Francisco não quis reter nem o habito, aceitou um emprestado.
A juventude é “energueia” e “virtus”, mas não necessariamente sabedoria e constância. Energia e força estão dadas por natureza, sabedoria e constância são construídas ao longo do tempo como resultado de um itinerário paciente. A energia e a força têm um potencial quase ilimitado: o jovem pensa que pode tudo e, realmente, pode quase tudo que pensa, nisso reside o potencial da juventude. Mas as ações pessoais tem desdobramentos que afetam a outras pessoas e instituições, a sabedoria consiste em aprender a ocupar com constância este delicado, acidentado e tenso espaço físico-psico-social.
A juventude é o presente se fazendo futuro num processo de amadurecimento permanente; um caminhar pelo valor intrínseco de cada passo. O objetivo da caminhada está sempre debaixo da sola do pé. Sim, com os olhos no horizonte, mas quem caminha são os pés: pé no chão. Pisar nos vincula ao chão, pertencemos ao chão que pisamos. Quem voa e flutua não toca com os pés, perdeu o chão e não pertence.
Chão é realidade. Pisar o chão da caminhada de cada dia, de todos os dias e do dia todo, é um desafio que nos questiona do amanhecer ao anoitecer. Perder o chão é cair no vazio e perder os vínculos de pertença.
Nossos grandes afazeres, sejam quais sejam, podem chegar a nos matar por excesso de trabalho e dedicação, mas nunca nos darão a imortalidade. Nós não duramos para sempre e nossas construções também vão terminar em ruína. Ser esquecido é algo quase inevitável, os monumentos também desabam com o tempo: krónos é kruel e korrosivo.
É conhecida a afirmação bíblica de que ninguém pode pagar o preço da isenção da própria morte. Da mesma forma, ninguém pode pagar o preço da isenção da própria realidade: fugir não é uma opção para toda a vida. E ainda mais, ninguém pode pagar o preço da isenção dos efeitos corrosivos do tempo. Sim, de repente, pode ser tarde demais!
Se cada um olha para si mesmo antes de olhar para os outros e se cada um só se permitir olhar para os outros depois de olhar para si mesmo, se abre a possibilidade de escaparmos do discurso queixoso sobre conflitos de geração e passarmos à fecundidade do diálogo entre jovens de todas as idades.
A dialogicidade é um modo de ser vinculante, lugar privilegiado para negociar e aprofundar significados e, talvez, sentidos. O diálogo, como fruto maduro, requer que nos preocupemos com as CONDIÇÕES PARA O DIÁLOGO. Governar e acompanhar é, também, trabalhar pela criação de condições para um diálogo fecundo, “que nutre e faz crescer”.
“Sendo Deus, não se apegou ciosamente a sua condição divina”, se contraiu e se fez homem com os homens e as mulheres. Que aconteceria se na juventude não nos apegássemos ciosamente à nossa condição de jovens e na ancianidade à nossa condição de anciões?

A graça das gerações: conflito ou diálogo? Parte I

"A nossa juventude adora o luxo, é mal-educada, despreza a autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. Os nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. Eles não se levantam quando uma pessoa idosa entra, respondem aos pais e são simplesmente maus” (Sócrates 470-399 a.C.).
"Não tenho mais nenhuma esperança no futuro do nosso país, se a juventude de hoje tomar o poder amanhã, porque esta juventude é insuportável, desenfreada, simplesmente horrível" (Hesíodo 720 a.C.).
"O nosso mundo atingiu o seu ponto crítico. Os filhos não ouvem os pais. O fim do mundo não pode estar muito longe" (Sacerdote do ano 2000 a.C.).
"Esta juventude está estragada até o fundo do coração. Os jovens são maus e preguiçosos. Eles nunca serão como a juventude de antigamente. A juventude de hoje não será capaz de manter a nossa cultura" (Vaso de argila, Babilônia, datado com mais 4.000 anos).
A humanidade é uma espécie geracional, nossa permanência na face da terra depende desse processo bio-temporal onde uma geração sucede a outra no árduo trabalho de perpetuar a espécie. A nossa geracionalidade não é casual, mas essencial, não pode ser evitada, caso aconteça, é o nosso fim como espécie. Também existem condições para que a geracionalidade da espécie siga o seu curso.
A humanidade, por conta da sucessão geracional, termina por criar uma história, isto é, as vivencias e os registros orais, escritos, plásticos, etc., do acontecer dessa sucessão geracional no tempo, no espaço e nas tradições. Aqui também é necessário chamar a atenção para as complexas condições das quais depende a construção da história.
A humanidade é uma espécie cultural, isto é, construtora de um patrimônio que lhe é próprio, desde a linguagem mais elementar, passando pelas ferramentas até chegar às estruturas mais sofisticadas. Tudo isso, sempre com o mesmo objetivo, garantir as condições geracionais da perpetuação da espécie.
A humanidade é uma espécie autoconsciente, isto é, sabe de si mesma, de sua condição geracional e das construções e elaborações culturais e imaginárias realizadas na história, para que assim, em cada tempo presente, toda geração possa olhar para trás, para frente e para si mesma. A autoconsciência é a possibilidade de sermos donos de nós mesmos.
Cuidado! É só a possibilidade, as condições, para que isso aconteça, devem ser trabalhadas.
A humanidade é uma espécie marcada pela angustia. A autoconsciência da temporalidade própria leva à autoconsciência da finidade no tempo: quem nasce, morre por necessidade intrínseca. A gênese e o fim são dois extremos que se tocam e, ao se tocarem, produzem um sentimento de provisoriedade e de transitoriedade em relação ao fenômeno da vida. Este estado de transitoriedade é a angustia ontológica, ela é constitutiva do ser.
A humanidade é uma espécie transcendental, isto é, produtora de idéias e imaginários. Ideamos e imaginamos coisas e muitas vezes vivemos dessas ideações e imaginações. Não poucas vezes estas idéias e esses imaginários estão desvinculados da realidade própria e da realidade do entorno. Pode chegar a ser mais fácil imaginar como sou e como o outro é, do que sair ao encontro de mim mesmo e do outro.
A humanidade é uma espécie medrosa: o desconhecido assusta e incomoda, principalmente se o desconhecido sou eu mesmo. Será sempre mais fácil lidar com uma idéia ou imaginário conhecido sobre mim mesmo que confrontar incomodamente o desconhecido que mora na minha interioridade.
A humanidade é uma espécie que mora na linguagem. O discurso, ainda que seja de palavras vazias, é o nosso pão de cada dia. Discursamos sobre nós mesmo e não permitimos que nossa interioridade fale sua verdade própria. Discursamos sobre as outras pessoas para não sermos incomodados com a verdade do outro, que muitas vezes se parece muito à minha própria e incomoda verdade.
A humanidade é uma espécie livre, isto é, não está determinada por nenhuma dessas condições, pode, a qualquer momento, romper a quadratura de sua manhosa natureza e, com vigorosa liberdade, enfrentar o que tem para ser enfrentado: primeiramente a realidade própria e, quase simultaneamente, a realidade do outro e do entorno. Para isso é condição necessário permitir “ser incomodado”.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Voltar às origens: com que propósito? Parte II

A nossa reflexão apontou de forma contundente para o fato de que cada um de nós é insubstituível nesta tarefa cotidiana da confrontação consigo mesmo e com a plenitude do outro. Esta disciplina pessoal e interior, na estrutura institucional da OFM, é denominada de formação permanente. Disciplina da confrontação ou disciplina da fuga?
A nossa reflexão também apontou de forma muito clara para fato de que as estruturas não passam de mediações, que podem ser estas ou outras, melhores ou piores, conforme os processos de maior ou menor reflexão e decisão. Lealdade à experiência originária ou às mediações?
As duas reflexões apontam na mesma direção, naturalmente que em planos diferentes. A primeira, no plano das políticas pessoais e interpessoais, e a segunda, no plano das políticas estruturais e institucionais.
Nos dois casos a exigência é a mesma: re-visar e re-propor modelos de gestão política. No primeiro caso, a gestão formativa e permanente da vida cotidiana e, no segundo caso, a gestão institucional das estruturas.
Estas duas exigências remetem inevitavelmente à experiência originária, já que as pessoas estão na formação permanente devido a uma suposta adesão e pertença a uma experiência originária e fundacional. Do mesmo modo, as estruturas institucionais foram constituídas e construídas como mediações a serviço da repetição ou da realização de experiências análogas à experiência originária e fundacional. Como fazer para gerir no dia a dia, desde a experiência originária e fundacional, a vida cotidiana e a estrutura institucional?
A gestão é modelar. Estamos em busca de um modelo de gestão que nos permita três movimentos simultâneos, orquestrados, harmoniosos e, naturalmente, exitosos nos seus resultados, a saber: 1) voltar às origens com um propósito claro; 2) re-visar e re-propor políticas de formação permanente com incidência nas pessoas e nas relações interpessoais; 3) re-visar e re-propor políticas institucionais de avaliação, flexibilização, reestruturação e reinvenção.
O modelo de gestão deverá estar conformado por um conjunto de critérios analiticamente bem dispostos e claros. Estes critérios devem conter aqueles elementos originários, inspiracionais e fundacionais irrenunciáveis e inegociáveis. É parte constitutiva do modelo de gestão a análise rigorosa da realidade humana e institucional. Para poder dizer como queremos estar é necessário, antes, saber realmente como estamos.
O modelo de gestão também incorpora uma estratégia prospectiva, isto é, não pensar de maneira adaptativa, mas de maneira transformativa. A prospectiva não nos adapta para uma maior comodidade, mas nos transforma para um maior profetismo. Prospectivamente somos chamados a decidir que tipo de pessoas nós queremos ser e que marco institucional queremos construir.
Por exemplo: Como queremos ver-nos e a nossa Entidade em seis anos? Que metas é necessário realizar a cada ano para alcançar a meta final dos seis anos? Que metas é necessário realizar a cada mês para alcançar as metas anuais de cada ano dos seis anos?
A necessidade de responder a estas perguntas nos leva ao segundo passo dentro do modelo de gestão. Trata-se da formulação de um projeto de ação por um determinado tempo. Este projeto estará conformado de um conjunto de princípios analiticamente bem dispostos, claros e sustentados nos critérios e nos dados levantados na avaliação da nossa realidade. Desses princípios se extrairá, de forma analítica, o objetivo geral e os específicos do projeto, para o sexênio, para triênio e para cada ano.
Para dar conta da realização desses objetivos sexenais, trienais e anuais, é necessário fazer planos e programas de ação: na vida pessoal e na fraternidade, nos órgãos de gerenciamento e nas distintas frentes de trabalhos.
É necessário advertir que estas indicações técnicas e metodológicas não têm nem a primeira nem última palavra em relação ao conteúdo essencial das experiências que desejamos realizar de modo mais organizado e controlado. Estas mediações têm a palavra do meio, isto é, a palavra que nos desafia a pensar também no “quando”, no “como”, no “por quanto tempo”, no “com quem”, no “com que”, no “para onde”, no “desde onde”, etc.
“Mas sabemos que estas coisas complicadas, estruturadas e trabalhosas não são nós. Tudo isso é um grande exagero e, no fim, não vai servir para nada, voltaremos para casa e continuará tudo igual. Melhor, vamos administrando as coisas na medida em que vão aparecendo, e as mais difíceis e dolorosas, confiamos ao tempo, deixemos como está para amadurecer e ver como vai ficando, com o tempo, se decompõem e caem. Nos final das contas, é no andar da carroça que as abóboras se ajeitam e apodrecem.”

Será que alguma das abóboras já se perguntou para onde vai esta carroça?

Voltar às origens: com que propósito? Parte I

A espécie humana é capaz de “ex-perior”, isto é, é a única capaz de viver o seu próprio ser e a sua própria vida como uma travessia perigosa na qual está em jogo e em risco este seu ser e esta sua vida.
A vida humana tem esta característica inusitada: existir; em latim, ex-essere, isto é, sair do seu princípio, sair da sua origem para iniciar um movimento de travessia, de encontro e desencontro, consigo mesmo e com os outros. Existir implica a possibilidade de confrontar-se com o próprio e ser confrontado pela plenitude do outro.
A travessia implica riscos. Os riscos forçam a existência contra os seus próprios limites. Quanto mais perigosa e arriscada é a experiência, mais excitante e chamativa. É nos limites da vida e da morte —já que podemos morrer para muitas coisas e continuar vivos— que uma experiência revela todo o seu vigor.
A confrontação, seja consigo mesmo ou com o outro, é a experiência derradeira. Nesta experiência está em jogo, por um lado, o ser, conjugado na forma do “sou” e do “somos”; por outro lado, o poder-ser, conjugado na forma do “poderei e do poderemos ser”. Nessa transparência, um futuro possível se transfigura num presente de esperança.
A experiência que põe em questão aquilo que é próprio de cada um e remete a plenitude da diferença do outro, abrindo no presente novos horizontes de esperança, tem poder de chamar a atenção de muitos outros e de se converter em experiência originaria, fundante e fundacional: uma experiência que inspira e congrega.
Inspirados e congregados, multiplicados em número e, ao menos no inicio, também no fervor, se vêem na necessidade de uma organização mínima do seu novo modo de vida. Faz-se necessário indicar os elementos básicos e fundamentais que deram origem a experiência que se multiplica. Urge estabelecer mecanismo que orientem este novo universo humano na direção marcada pela fonte inspiradora.
A experiência originária se converte em experiência estruturada e institucionalizada. Esta é a marca indelével do tempo: cronologicamente a experiência originaria se converte em fonte de inspiração para aqueles que foram atraídos por ela; se converte também em intuição originária que dá sentido ao marco institucional e às estruturas de mediação.
As nossas presenças e nossas ações são inevitavelmente mediadas por algum tipo de instrumento, desde os mais simples e elementares, até as estruturas institucionais. Inicialmente, as mediações estruturais e institucionais são necessárias e estão conformadas à realidade que atendem.
As presenças e ações, com o tempo, podem se converter em obras estruturadas e institucionalizadas. O aparecimento de uma instituição formalmente constituída tem suas conseqüências. As instituições são auto-poiéticas, isto é, funcionam com uma dialética interna de auto-reprodução de si mesmas. Correm sempre o risco de se converterem em fins em si mesmas.
A corrosão do tempo é inevitável, tanto para as pessoas quanto para as estruturas institucionais. De todas as corrosões possíveis, a mais devastadora é a corrosão do sentido, que afeta a vitalidade da instituição pela relativização da experiência originária, fonte de inspiração, razão de ser e de sentido da instituição. A forma mais comum dessa relativização é a “normosis”: é normal.
O sem-sentido de uma estrutura institucional afeta o seu desempenho e acarreta ineficiência e ineficácia na realização do seu propósito fundacional: repetir ou realizar experiências análogas à experiência originária e inspiradora. A ausência de sentido pode ser experimentada nas muitas situações de rotinas vazias durante uma jornada de trabalho no interior da instituição.
A perda de sentido acarreta um vazio de sentido. O vazio não pode ser destruído e sua força gravitacional impede qualquer fuga. Diante do vazio existem duas alternativas, a saber: deixar-se aniquilar ou preencher o vazio. Para deixar-se aniquilar é suficiente relaxar e deixar que todas as coisas havidas e por haver se transformem em coisas normais.
Para preencher o vazio é necessário armar-se com a ferramenta da autodisciplina hermenêutica e entrar num processo de reconstrução de sentidos.
Avaliar é um verbo muito difícil de ser conjugado. Não temos este “habitus”. A cultura da não-avaliação é um indicador gravíssimo, tanto nas pessoas quanto nas instituições. Não avaliar é pura e simplesmente perder a oportunidade de crescer e aperfeiçoar aquilo pelo qual estamos aqui. A não-avaliação é uma forma sistêmica de omissão. Na Divina Comedia, a omissão se iguala à fria indiferença, obra prima do mal sobre a face da terra. “O demônio é um ser glacial” (Dante).
A pessoa humana e as instituições necessitam ser avaliadas e reinventadas sempre de novo. Tem sentido voltar às origens sem um claro propósito? Estamos dispostos a reinventar-nos e às nossas estruturas e instituições a partir da volta à experiência originária?

“Irmãos comecemos, até agora pouco ou nada fizemos”.
“Fiz a minha parte, que Senhor vos ensine a fazer a vossa”. (Francisco de Assis)

domingo, 19 de abril de 2009

Na vida cotidiana da Fraternidade, somos Irmãos e Irmãs de quem?

A vida franciscana em todas as suas expressões conhecidas até hoje vem sempre acompanhada de um vocabulário próprio, o vocabulário do carisma. Dentre as muitas palavras que moram neste vocabulário, desejo chamar a atenção para uma em especial, a saber: a palavra fraternidade.
Sem dúvida alguma a palavra fraternidade faz parte da nossa linguagem. Encontramos esta palavra na nossa linguagem ordinária e elementar da vida cotidiana, bem como na linguagem elaborada e especializada dos nossos acadêmicos. De uma ou outra forma a palavra fraternidade se impõe ao nosso discurso e de certa forma, o nosso discurso nos impõe esta palavra.
Visto desde a perspectiva de um vocabulário, “fraternidade” não é mais que uma palavra. Por aí vamos começar. O que pode fazer a palavra fraternidade enquanto palavra?
A Filosofia da Linguagem e a Hermenêutica filosófica nos advertem que a palavra é vinculante e performativa. A palavra é vinculante em dois níveis básicos. Vejamos como isto acontece.
O primeiro nível de vinculação é aquele da significação, quando a palavra expressa a nossa percepção do que são as coisas. Percebemos e dizemos que isto é uma cadeira, aquilo é uma janela e aquilo outro uma árvore. Nós temos a percepção do que são as coisas e a palavra tem o poder de referir significativamente e de conter esta percepção.
O segundo nível de vinculação é aquele da compreensão, quando aquilo que a palavra significa é assimilado como conteúdo existencial e passa ter sentido para vida. Por exemplo, quando nos sentamos confortavelmente na cadeira e descansamos ou rezamos; quanto olhamos através da janela e nos deixamos inspirar pela paisagem; quando nos colocamos sob a sombra da árvore e desfrutamos de uma diálogo que refresca o corpo e refrigera a alma. Em todos esses casos estabelecemos uma relação de sentido com estas coisas sem dizer uma palavra sobre elas. Até porque não é necessário pronunciar a palavra cadeira para sentar-se, ou a palavra janela para ver através dela ou ainda, a palavra árvore para desfrutar do frescor de uma sombra.
A dimensão performativa da palavra reside no seu poder de performance, isto é, de imprimir uma forma determinada à realidade, neste caso esta realidade é a vida mesma. Performativamente falando, a palavra imprime certo caráter, impulsiona certo movimento e inicia certo desempenho na dinâmica cotidiana da vida. A performatividade nos adverte que a palavra tem um poder intrínseco de mover e direcionar.
A performatividade da linguagem está no coração da nossa Profissão Religiosa. Professar é imprimir um caráter intencionalmente indelével na própria vida. Com as palavras do rito da profissão religiosa terminamos fazendo algo conosco mesmos, damos uma forma a nossa vida. A profissão tem uma performance, isto é, tem o poder de orientar o nosso modo de viver.
Se articulamos os poderes da linguagem, a saber: significação, sentido e performatividade, nos damos conta que todo nosso mundo da vida cotidiana está linguisticamente ordenado. Mas, como? Simples, pelos nomes que lhes damos às coisas, aos seres vivos e às pessoas. Dar nome ou nomear é uma atividade altamente organizativa. Se algo tem um nome é porque, de alguma forma, faz parte do nosso mundo da vida. Por exemplo: o cachorro do mato não tem nome, mas o cão de guarda da nossa casa, sim, tem nome. Ter nome significa que faz parte da nossa esfera doméstica, que pertence de algum modo ao “domus”, que em Latim significa casa, morada.
Mas não só os nomes organizam a nossa vida, as frases também têm um poder de organização ou de reorganização das nossas vidas. Por exemplo: quando dizemos: “eu te prometo que vou te presentear no Natal”. Esta frase muda a vida de quem escuta e de quem fala. Quem escuta, a partir de agora, tem uma expectativa que antes não tinha: a de receber um presente no Natal e quem fala tem um compromisso que antes não tinha: dar um presente no Natal.
Como podemos ver, dizer uma palavra não é algo tão simples quanto parece ser a primeira vista. Quando dizemos uma palavra, quando usamos uma palavra, quando abusamos de uma palavra, colocamos a realidade em movimento. As palavras movem esta realidade chamada mundo da vida, o mundo onde existimos cotidianamente.
Voltemos agora à nossa palavra: fraternidade. Vamos analisar sumariamente alguns possíveis usos dessa palavra no nosso vocabulário institucional. Podemos verificar que muitas vezes a palavra fraternidade é usada para designar um local físico de moradia, isto acontece, por exemplo, no endereçamento de envelopes: Fraternidade São Francisco, Rua 03 de outubro 1226, Assis, It.
Outras vezes a vemos ser usada para designar um grupo de pessoas que partilham algumas coisas, colocando-as em comum. Neste caso, fraternidade é sinônimo de comunidade. Em algumas Universidades são comuns as fraternidades de alunos, que vivem na mesma casa em regime comunitário. A designação de grupos humanos baixo o qualificativo de fraternidade não acontece apenas a nível local, é possível também encontrar macro designações, tais como fraternidade regional, nacional, internacional, etc.
É comum também usar o vocábulo fraternidade para designar as relações entre integrantes de um grupo de pessoas. Neste caso a fraternidade seria o vínculo entre as pessoas ou o espírito que mantêm as pessoas unidas umas às outras.
Agora temos condições de dar um passo adiante e propor-nos a pergunta que interroga pelo étimo da palavra fraternidade. É conhecido que esta palavra está formada de duas outras, a saber: frater, do Latim e idade, do Sânscrito. A palavra latina se traduz literalmente por irmão e numa tradução mais livre, também por irmã. O sufixo que provem do Sânscrito não tem uma tradução literal consagrada, normalmente é compreendido como um indicador de movimento, de dinamicidade. Neste caso, o sufixo idade agrega dinamismo e mobilidade ao substantivo frater.
Mas, de que tipo de movimento e dinamismo estamos falando? Será que um frater de agenda cheia, que passa todo dia em movimento de um lado a outro, dinamizando seu trabalho, está com isso gerando o fenômeno da fraternidade? Parece que o sufixo idade não se refere a este tipo de movimento.
O sufixo idade faz referência a um movimento que é constitutivo do frater. O frater é aquele que, para ser o que é, um frater, está constituído no modo da referência a outros. O frater, ou é frater de alguém ou não é frater. A fraternidade é o fruto maduro de um movimento de correlação que constitui a identidade do frater. É a dinâmica das correlações quem faz o frater. O frater não pode dar-se a si mesmo o ser frater, só a dinâmica das correlações pode conceder a alguém o ser frater.
Até aqui descobrimos que a fraternidade é essencialmente uma correlação vinculante que constitui em cada um o seu ser frater. Mas esta constatação ainda é muito genérica e com facilidade poderia terminar numa postura holística e universalista sem maior transcendência.
A correlação como dinamismo vinculante é necessária, mas insuficiente, para dar conta de explicar com maior profundidade o significado da palavra fraternidade. O frater não é frater só pela correlação com outros, o é também por uma relação com algo que transcende os correlatos. O movimento de correlação acontece ao redor de um núcleo gravitacional que tem o poder de atrair, relacionar e correlacionar.
Este núcleo gravitacional é o ideal, o objetivo, o sonho, o carisma, etc., quem tem o poder de atrair, de enganchar e de correlacionar as pessoas umas com as outras, de forma dinâmica, transformando cada uma em frater numa fraternidade.
A fraternidade é o fruto maduro do coração humano, que encantado e enganchado por um projeto de vida, se deixa correlacionar com outros na mesma situação e se dispõe a viver de forma dinâmica no seu dia a dia o ser frater.
Este núcleo gravitacional é uma força poderosa, que não só exerce uma sedutora atração, más também engancha aqueles que atrai e os lança, os arremessa uns na direção dos outros, os correlaciona para que se constituam frater de uma fraternidade. O dinamismo enunciado pelo sufixo idade tem uma fonte duradoura e inesgotável, voltar a esta fonte e deixar-se relançar, é o segredo para manter a vitalidade das correlações que transformam e mantêm uma pessoa como frater de uma fraternidade.
Se frater é irmão ou imã, então, concluímos que só é possível ser “irmão ou irmã de ... alguém”. Ninguém pode ser irmão ou irmã se não estiver correlacionado à outra pessoa. Ou somos irmão ou irmã de alguém ou simplesmente não somos nem irmão nem irmã. O ser irmão ou irmã fala do vínculo e não das pessoas. Fraternidade ou irmandade é um vinculo de correlacionamento dinâmico. Irmão e irmã não é um substantivo, nem nome próprio e nem adjetivo para as pessoas, mas é o nome daquilo que substantivamente acontece ou não entre as pessoas: a vinculação entre as pessoas em torno de um ideal.
Creio que já podemos responder a pergunta inicial. Na fraternidade, somo irmãos e irmãs de quem? Simples, somos irmãos e irmãs dos outros irmãos e das outras irmãs, correlacionados dinâmicamente uns com outros pela força gravitacional de um ideal que atrai, engancha e arremessa uns na direção dos outros.
Incorporemos agora um elemento novo. Francisco de Assis, não por poucas razões, é considerado o Irmão Universal, irmão de todos e de tudo. Na espiritualidade franciscana a fraternidade é radicalizada, desborda as possibilidades mesmas da palavra fraternidade.
A palavra fraternidade no idioma “franciscanês’ é um superlativo, é uma exacerbação, é exageradamente significativa. Tudo é irmão de tudo, nada fica de fora da fraternidade. Tudo e todos são correlatos de tudo e de todos. A fraternidade é universal, no sentido de que cabe dentro de si todo o universo como lugar da dinâmica das correlações. Se for assim, que tamanho tem a fraternidade? Não podemos saber, já que não sabemos que tamanho tem o universo.
Não sabemos que tamanho tem a fraternidade nem o universo, mas sabemos que no centro desta fraternidade e deste universo há um núcleo gravitacional irradiador que atraiu e fascinou Francisco de Assis. Enganchado por esta força Francisco foi lançado na direção de toda a obra da criação, se correlacionou de uma forma tão dinâmica com ela que pode cantar:

-Grande e poderoso e bom Senhor: * a ti toda glória e homenagem.
-Louvado sejas meu Senhor * por todas as tuas criaturas.
-Louvado pelo irmão, o sol * que marca os dias e clareia tudo
-É belo e de áureo fulgor * de tua grandeza uma imagem.
-Louvado pela irmã a lua * e as estrelas fulgurantes.
-Louvado pelo irmão o vento * e o ar e as nuvens alvinitentes.
-Louvado por nossa mãe, a terra * que nos sustenta com seus frutos.
-Louvai a Deus e agradecei – servi-o em grande humildade.

O dom da Vocação: 800 anos depois

O átrio da Basílica Patriarcal de São Francisco de Assis guarda uma deslumbrante vista do vale em cujas ladeiras se encontra a cidade de Assis. Uma paisagem que convida a parar e admirar. Uma visão encantadora que excita de forma profunda a imaginação. Diante dos olhos se abre um abismo estético de extasiante beleza, que por um instante tem o fulgor da transfiguração do paraíso.
O jovem Francisco viveu e rolou por estas paragens cobertas por um verde vivo de brilho molhado. Esta beleza que faz vibrar os sentido e saltar a imaginação remete inevitavelmente a níveis de percepção mais profundos e mais elevados da realidade. A contemplação daquela efusiva beleza eleva o espírito e abre o caminho para a graça de Deus.
A graça de Deus toca o coração de Francisco de muitas formas. Na guerra tem que se decidir entre servir ao servo ou ao Senhor. Na prisão e na doença tem a oportunidade de se reencontrar de forma intensa consigo mesmo e com sua própria verdade. No ventre da terra teve a oportunidade de colocar o seu coração inquieto de molho no coração do seu Senhor. Todo o cosmos escutava contrito o seu ardente clamor: “Senhor, que queres que eu faça?”
Na capela de São Damião, lugar do cuidado dos Peregrinos, no silêncio da ruína e do abandono, encontra um Cristo crucificado de pé e com os olhos abertos. Este Senhor da prontidão e da lucidez que convida a uma fé erguida e desperta, lhe inspira o coração e a alma a se colocar em movimento e fazer algo para começar, ainda que seja empilhar pedras na forma de paredes.
O Evangelho da festa de São Matias lhe revela de modo certo e seguro a forma de ir pelo universo, sendo uma presença viva, intensa e consistente daquela beleza que já não é mais contemplada e daquele amor que já não é mais amado. Repleto de algo mais que ele mesmo Francisco exclama: é isto que estou procurando, é o que eu desejo e o que vou fazer de todo o coração.
A jovem Clara, beleza e amor no mesmo esplendor, aquela que antecedeu Francisco entre os leprosos, lhe revela que a presença e o cuidado são as pedras com as quais se constroem as paredes vivas da Igreja do seu Senhor. Foi ali que ele aprendeu o significado profundo do ser menor e do ser irmão.
Tocando seu violino de pau, domou os corações das feras e re-encantou o mundo. Pleno do seu Senhor, deixou-se rasgar no corpo e na alma. Parecido ao próprio Deus, cantou a reconciliação universal de todo cosmos com seu Criador.
Ao fazer memória do caminho que o levou do belo ao santo, Francisco atribui ao senhor todas as maravilhas que aconteceram na sua vida. Atribui ao Espírito do Senhor e o santo modo de operar todas as coisas que foram realizadas nele e por meio dele. O que chamamos de Testamento e que cremos foi deixado para nós como uma espécie de legado espiritual é, na verdade, uma grande prece de reconhecimento e de restituição àquele Senhor que a ele tudo concedeu.
O “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar” se apoderou do corpo, da vontade, do entendimento e da alma de Francisco. Nós legamos dele a recomendação textual e expressa de que devemos desejar o “Espírito do Senhor e seu santo modo de operar”. Desejar este espírito e o seu santo modo de operar é o nosso primeiro grande desafio ao celebrar a graça das origens e nela, a graça da vocação.
Não há possibilidade de renovar a nossa vida franciscana sem desejar ardentemente o “Espírito do Senhor e seu santo modo de operar”. O verbo é desejar. O verbo não é pensar, nem receber, nem possuir. O nosso verbo é desejar, na voz ativa, e ser possuído, na voz passiva, pelo “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar”.
É o “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar” quem fará algo em nós, fará algo conosco e fará algo por nosso intermédio. A nosso chamado vocacional não é obra nossa, mas é obra deste Espírito em nós.
Como em Francisco o espírito pode operar muitas maravilhas em nós e entre nós. Pode fazer que nos encontremos em meio de tantos desencontros; que falemos a mesma língua, cultivemos os mesmo sentimentos e nos re-encantemos pelos mesmos ideais; que mutuamente, nos acolhamos, nos escutemos, nos animemos e nos ajudemos; que nos sintamos, uma vez mais, chamados e enviados como irmãos universais de todas as criaturas.
Na liberdade temos que fazer a nossa escolha. Temos que proclamar, como Francisco, ao ouvir o Evangelho, o que realmente buscamos, desejamos e queremos fazer de todo o coração. Realmente buscamos e desejamos o “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar”?
A resposta a esta pergunta é muito importante. Só possuídos pelo “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar” poderemos, como Francisco, fazer aquela pergunta derradeira: “Senhor, que queres que eu faça?”
O Senhor respondeu a Francisco: vai Francisco, restaura o que iniciei. Volte uma vez mais às origens, à inspiração original e originária. Ao deixar para nós a recomendação de nunca abandonar Santa Maria dos Anjos da Porciúncula, o lugar da intuição e da origem da nossa vocação e da nossa vida, Francisco nos faz partícipes e continuadores daquele chamado de volta às origens, dirigido a ele pelo Senhor. Ser Frade Menor é estar comprometido com uma permanente volta às origens.
A volta às origens é penosa, é como caminhar ao cair da tarde de inverno, no entanto, só ela pode proporcionar a verdadeira e perfeita alegria. Toda vez que a tarde anuncia a chegada das trevas e o inverno se sente mais frio e impiedoso, é chagada a hora, uma vez mais, de empreender o caminho de volta a Santa Maria dos Anjos da Porciúncula.
Para empreender esta volta incessante às origens Francisco se coloca a caminho e neste caminhar que faz caminho para outros caminharem, o Senhor lhe concedeu a Francisco o Seu tão desejado “Espírito e seu santo modo de operar”; concedeu-lhe iniciar uma vida de penitência pelo reconhecimento de que estava em pecado e não conseguia encarar a sua realidade própria e os seus temores; concedeu-lhe ter misericórdia consigo mesmo e com todos, convertendo-se na compaixão encarnada; concedeu-lhe Sua mão e sua guia para enfrentar de pé e de olhos abertos tudo o que lhe afligia o coração; concedeu-lhe que aquela realidade vivenciada como amarga se convertesse em fonte de doce crescimento humano e espiritual e por fim, concedeu-lhe a estatura de homem de Deus e de Irmão universal.
E nós, que estamos hoje aqui? O que estamos esperando olhando para o céu, como os discípulos no Evangelho da Ascensão? O que estamos fazendo no alto deste monte de sete alegrias, acomodados dentro de nossas tendas vivendo da gloriosa memória daqueles que viveram o que nos prometemos?
A graça das origens, e nela, a graça da vocação, aponta para fora das tendas e para baixo. Aponta para a saída de si e para o movimento de ir ao encontro de quem necessita ser encontrado, acolhido, escutado e cuidado.
Para isto fomos chamados e para isto fomos enviados, a fim de que, pela nossa presença, o mundo seja diferente. Somos chamados a curar os coxos, os mudos e os surdos.
Os coxos são aqueles que não tem quem os acolha, por isso não têm para onde caminhar, estão paralisados. Abramos os nossos braços e todos os paralíticos se levantarão, tomarão o seu leito e caminharão milagrosamente em nossa direção para serem acolhidos.
Os mudos são aqueles que ninguém escuta, por isso estão emudecidos, não falam. Abramos os nossos ouvidos e milagrosamente todos os mudos começarão a falar e contar as suas histórias.
Os surdos são aqueles com quem ninguém fala, por isso não podem escutar. Abramos nossas bocas e deixemos que o “Espírito do Senhor e o santo modo de operar” coloque em nossos lábios palavras de consolo, de ânimo e de esperança para acariciar os ouvidos dos corações abatidos dos filhos deste século.
Como podemos ver, estes milagres estão ao nosso alcance. Através deles poderemos colocar a nossa pedra viva para construir, já neste mundo, uma antecipação daquilo que Deus reserva a todos os homens e mulheres de boa vontade de todos os tempos e todos os lugares.
São Francisco fez a parte dele, que Deus nos conceda discernir e fazer a nossa parte.

“Sine proprio”

O ser humano, apesar de sua evolução e de haver crescido em civilidade em muitos aspectos de sua vida pessoal e social, não deixou de ser um animal. Esta realidade animal que habita as profundezas de cada um de nós deveria ser encarada com mais seriedade, cuidado e precaução.
Os animais, na terra, na água ou no ar, são, na maioria dos casos, seres territoriais. A territorialidade como espaço vital é algo que está inscrito na genética mesma de cada uma dessas espécies. Com o ser humano não é diferente. O território está relacionado com as condições para que a vida seja possível hoje e continue sendo possível amanhã. A invasão do território é uma ameaça direta à vida presente e futura. A invasão é instintivamente rechaçada com violência.
A territorialidade como espaço vital e as guerras para defender ou para ampliar o território são fenômenos tão antigos quanto o próprio ser humano. Sem dúvida isto está inscrito em nosso inconsciente coletivo e está presente de muitos modos no nosso inconsciente pessoal.
A guerra por território produziu uma tecnologia chamada de estratégia, a arte de ganhar a guerra de todos contra todos e se apoderar ou ampliar o território. A posse do território está associada ao poder. A poderosidade de um animal se mede pela extensão do seu território e pela capacidade de mantê-lo sob seu estrito domínio. O poder é a garantia que tem o animal de ficar de posse do território, até que apareça um poder maior.
A posse de um território é garantida pela força e pelo poder. Os animais criaram formas concretas de demarcação territorial. Por exemplo, o urso deixa a marca de suas garras nas árvores e muitos animais demarcam o seu território com o odor de suas secreções glandulares. A violação do território é uma afronta e cria um inevitável conflito. A violação do território é como se fosse a violação mesma daquele que tem a posse. Parece que o território se converte numa extensão de quem o possui.
Território, posse e guerra são palavras inscritas nos nossos instintos mais básicos e elementares. Estes instintos que habitam as nossas profundezas nos escravizam a vida toda. Passamos toda a vida montando guarda nas inúmeras guaritas de nossos territórios. Estamos sempre ocupados, remendando e eletrificando a cerca que demarca o nosso território. Fazemos vigília esperando a noite passar, pois na calada da noite o território pode ser arrebatado. A posse acorrenta o proprietário àquilo que ele possui. A posse tolhe a liberdade interior e exterior, converte a vida em um eterno meio dia sem descanso, em preocupação e ocupação.
Viver sem nada de próprio é viver sem território. É lutar contra um dos nossos mais antigos instintos e contra uma das mais poderosas tendências que habita o nosso ser: possuir.
Viver sem nada de próprio é abrir mão das seguranças propiciadas pelo território. Viver sem nada de próprio é abandonar-se ao vazio de território. Viver sem nada de próprio é ser um ex-propri-ado, isto é, alguém que está fora do regime da propriedade e da posse de um território.
São Francisco recomenda que não nos apropriemos de casas, igrejas ou privilégios, nem de cargos ou ministérios e que os ladrões, aqueles que invadem e dilapidam o território, sejam acolhidos com amabilidade.
O “sine proprio” nos liberta de nós mesmos, de nossos territórios interiores e exteriores e de nossas fantasias de segurança e de poder.
Sem nada de próprio, podemos escolher o Evangelho como forma de vida sem necessidade de olhar para trás, sem voltar às excrescências da vontade própria, sem ter saudades. Sem território não há onde lançar raízes, prender-se e amarrar-se.
Sem nada de próprio voltamos, de novo, à dinâmica do deserto, terra de ninguém, estado de errância e itinerância permanentes, lugar privilegiado para o encontro com Deus. Se for verdade que todos somos, de uma ou de outra forma, filhos de Abraão, então todos somos filhos de um hebreu errante, de um ex-propri-ado que não vive em e de um território, mas de uma promessa, cuja dinâmica consiste em nunca deixar de ser uma promessa.
Somos os filhos da promessa. A promessa não é nosso território, mas nosso horizonte, nela e dela vivemos: quem se ex-propri-ar receberá cem vezes mais o que se ex-propri-ou.

A espiritualidade da escuta profunda

O ser humano se move sempre num mundo de significados e sentidos. Este mundo é incessantemente banhado pelo fluxo da linguagem. A linguagem é a morada do significado e do sentido, nela residem o símbolo, o gesto, a palavra e o silêncio. Sem ela o nosso mundo da vida perderia todo o movimento, a dinamicidade e a vitalidade.
A linguagem é essencialmente referente e vinculante. É por meio dela que construímos o conjunto de inter-relações que dão significado, sentido e sustentação ao nosso mundo e à nossa vida. Sem a linguagem e sem estes vínculos de sustentação estaríamos paralisados, estáticos e pairando sobre o vazio.
A linguagem tem o poder de significar e de definir. Entre muitas coisas, é a linguagem quem define o nosso estado de vida. O estado de vida de um religioso é essencialmente vocação, isto é, linguagem que chama. O vocativo é uma graça que requer escuta e atenção; liberdade e decisão; resposta e vinculação.
Não é tarefa muito difícil fazer a lista dos nossos pertences, mas e nós, a quem pertencemos? Aquilo que é nosso certamente está bem definido, mas e nós, somos de quem? A resposta a estas perguntas nos ajuda a esclarecer os nossos vínculos e a identificar a quem somos leais.
O chamado é sempre um “chamado para...”, abre e indica um horizonte de orientação e um projeto significativo. O chamado está sempre na origem, ele é a graça das origens, mas ele também requer vínculo de adesão e sentido de pertença.
O chamado requer uma resposta, um responso, uma responsabilidade. Responder é proferir, profissão, promessa. Responder é empenhar a palavra, é dar e empenhar o significado e o sentido que moram na linguagem como garantia da adesão, da pertença e da lealdade.
A obediência é a disciplina do vínculo de adesão, do sentido de pertença e da lealdade. Ela é “ob-audire”, isto é, ouvir para dentro. Na obediência, escutamos a sonoridade significativa da graça das origens, de nossa vinculação a um projeto e exercitamos o sentido de pertença colocando-nos na postura construtiva de comunhão de vida e de ação. Obedecer é perseverar na adesão e na pertença; obedecer é ser leal.
A Fraternidade é o lugar da graça da obediência. Nela vivemos cotidianamente o nosso vínculo de adesão e nos deixamos guiar pelo sentido de pertença a uma forma de vida e a um legado a quem decidimos livremente aderir e ser leais.
A autoridade não se opõe à obediência. A autoridade é ministério, é serviço a outros. Como tal, é sinônimo de obediência. A autoridade é quem mais obedece. Não há autoridade sem a escuta profunda do “ob-audire”.
No entanto, a obediência que não tem nem significado nem sentido e que não se exercita como escuta profunda, não passa de capricho autoritário de quem manda e de servilismo ressentido de quem obedece. Onde reina o capricho e o servilismo não há lealdade e sobra insidia e conspiração pelo poder.