domingo, 19 de abril de 2009

“Sine proprio”

O ser humano, apesar de sua evolução e de haver crescido em civilidade em muitos aspectos de sua vida pessoal e social, não deixou de ser um animal. Esta realidade animal que habita as profundezas de cada um de nós deveria ser encarada com mais seriedade, cuidado e precaução.
Os animais, na terra, na água ou no ar, são, na maioria dos casos, seres territoriais. A territorialidade como espaço vital é algo que está inscrito na genética mesma de cada uma dessas espécies. Com o ser humano não é diferente. O território está relacionado com as condições para que a vida seja possível hoje e continue sendo possível amanhã. A invasão do território é uma ameaça direta à vida presente e futura. A invasão é instintivamente rechaçada com violência.
A territorialidade como espaço vital e as guerras para defender ou para ampliar o território são fenômenos tão antigos quanto o próprio ser humano. Sem dúvida isto está inscrito em nosso inconsciente coletivo e está presente de muitos modos no nosso inconsciente pessoal.
A guerra por território produziu uma tecnologia chamada de estratégia, a arte de ganhar a guerra de todos contra todos e se apoderar ou ampliar o território. A posse do território está associada ao poder. A poderosidade de um animal se mede pela extensão do seu território e pela capacidade de mantê-lo sob seu estrito domínio. O poder é a garantia que tem o animal de ficar de posse do território, até que apareça um poder maior.
A posse de um território é garantida pela força e pelo poder. Os animais criaram formas concretas de demarcação territorial. Por exemplo, o urso deixa a marca de suas garras nas árvores e muitos animais demarcam o seu território com o odor de suas secreções glandulares. A violação do território é uma afronta e cria um inevitável conflito. A violação do território é como se fosse a violação mesma daquele que tem a posse. Parece que o território se converte numa extensão de quem o possui.
Território, posse e guerra são palavras inscritas nos nossos instintos mais básicos e elementares. Estes instintos que habitam as nossas profundezas nos escravizam a vida toda. Passamos toda a vida montando guarda nas inúmeras guaritas de nossos territórios. Estamos sempre ocupados, remendando e eletrificando a cerca que demarca o nosso território. Fazemos vigília esperando a noite passar, pois na calada da noite o território pode ser arrebatado. A posse acorrenta o proprietário àquilo que ele possui. A posse tolhe a liberdade interior e exterior, converte a vida em um eterno meio dia sem descanso, em preocupação e ocupação.
Viver sem nada de próprio é viver sem território. É lutar contra um dos nossos mais antigos instintos e contra uma das mais poderosas tendências que habita o nosso ser: possuir.
Viver sem nada de próprio é abrir mão das seguranças propiciadas pelo território. Viver sem nada de próprio é abandonar-se ao vazio de território. Viver sem nada de próprio é ser um ex-propri-ado, isto é, alguém que está fora do regime da propriedade e da posse de um território.
São Francisco recomenda que não nos apropriemos de casas, igrejas ou privilégios, nem de cargos ou ministérios e que os ladrões, aqueles que invadem e dilapidam o território, sejam acolhidos com amabilidade.
O “sine proprio” nos liberta de nós mesmos, de nossos territórios interiores e exteriores e de nossas fantasias de segurança e de poder.
Sem nada de próprio, podemos escolher o Evangelho como forma de vida sem necessidade de olhar para trás, sem voltar às excrescências da vontade própria, sem ter saudades. Sem território não há onde lançar raízes, prender-se e amarrar-se.
Sem nada de próprio voltamos, de novo, à dinâmica do deserto, terra de ninguém, estado de errância e itinerância permanentes, lugar privilegiado para o encontro com Deus. Se for verdade que todos somos, de uma ou de outra forma, filhos de Abraão, então todos somos filhos de um hebreu errante, de um ex-propri-ado que não vive em e de um território, mas de uma promessa, cuja dinâmica consiste em nunca deixar de ser uma promessa.
Somos os filhos da promessa. A promessa não é nosso território, mas nosso horizonte, nela e dela vivemos: quem se ex-propri-ar receberá cem vezes mais o que se ex-propri-ou.

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