domingo, 19 de abril de 2009

Na vida cotidiana da Fraternidade, somos Irmãos e Irmãs de quem?

A vida franciscana em todas as suas expressões conhecidas até hoje vem sempre acompanhada de um vocabulário próprio, o vocabulário do carisma. Dentre as muitas palavras que moram neste vocabulário, desejo chamar a atenção para uma em especial, a saber: a palavra fraternidade.
Sem dúvida alguma a palavra fraternidade faz parte da nossa linguagem. Encontramos esta palavra na nossa linguagem ordinária e elementar da vida cotidiana, bem como na linguagem elaborada e especializada dos nossos acadêmicos. De uma ou outra forma a palavra fraternidade se impõe ao nosso discurso e de certa forma, o nosso discurso nos impõe esta palavra.
Visto desde a perspectiva de um vocabulário, “fraternidade” não é mais que uma palavra. Por aí vamos começar. O que pode fazer a palavra fraternidade enquanto palavra?
A Filosofia da Linguagem e a Hermenêutica filosófica nos advertem que a palavra é vinculante e performativa. A palavra é vinculante em dois níveis básicos. Vejamos como isto acontece.
O primeiro nível de vinculação é aquele da significação, quando a palavra expressa a nossa percepção do que são as coisas. Percebemos e dizemos que isto é uma cadeira, aquilo é uma janela e aquilo outro uma árvore. Nós temos a percepção do que são as coisas e a palavra tem o poder de referir significativamente e de conter esta percepção.
O segundo nível de vinculação é aquele da compreensão, quando aquilo que a palavra significa é assimilado como conteúdo existencial e passa ter sentido para vida. Por exemplo, quando nos sentamos confortavelmente na cadeira e descansamos ou rezamos; quanto olhamos através da janela e nos deixamos inspirar pela paisagem; quando nos colocamos sob a sombra da árvore e desfrutamos de uma diálogo que refresca o corpo e refrigera a alma. Em todos esses casos estabelecemos uma relação de sentido com estas coisas sem dizer uma palavra sobre elas. Até porque não é necessário pronunciar a palavra cadeira para sentar-se, ou a palavra janela para ver através dela ou ainda, a palavra árvore para desfrutar do frescor de uma sombra.
A dimensão performativa da palavra reside no seu poder de performance, isto é, de imprimir uma forma determinada à realidade, neste caso esta realidade é a vida mesma. Performativamente falando, a palavra imprime certo caráter, impulsiona certo movimento e inicia certo desempenho na dinâmica cotidiana da vida. A performatividade nos adverte que a palavra tem um poder intrínseco de mover e direcionar.
A performatividade da linguagem está no coração da nossa Profissão Religiosa. Professar é imprimir um caráter intencionalmente indelével na própria vida. Com as palavras do rito da profissão religiosa terminamos fazendo algo conosco mesmos, damos uma forma a nossa vida. A profissão tem uma performance, isto é, tem o poder de orientar o nosso modo de viver.
Se articulamos os poderes da linguagem, a saber: significação, sentido e performatividade, nos damos conta que todo nosso mundo da vida cotidiana está linguisticamente ordenado. Mas, como? Simples, pelos nomes que lhes damos às coisas, aos seres vivos e às pessoas. Dar nome ou nomear é uma atividade altamente organizativa. Se algo tem um nome é porque, de alguma forma, faz parte do nosso mundo da vida. Por exemplo: o cachorro do mato não tem nome, mas o cão de guarda da nossa casa, sim, tem nome. Ter nome significa que faz parte da nossa esfera doméstica, que pertence de algum modo ao “domus”, que em Latim significa casa, morada.
Mas não só os nomes organizam a nossa vida, as frases também têm um poder de organização ou de reorganização das nossas vidas. Por exemplo: quando dizemos: “eu te prometo que vou te presentear no Natal”. Esta frase muda a vida de quem escuta e de quem fala. Quem escuta, a partir de agora, tem uma expectativa que antes não tinha: a de receber um presente no Natal e quem fala tem um compromisso que antes não tinha: dar um presente no Natal.
Como podemos ver, dizer uma palavra não é algo tão simples quanto parece ser a primeira vista. Quando dizemos uma palavra, quando usamos uma palavra, quando abusamos de uma palavra, colocamos a realidade em movimento. As palavras movem esta realidade chamada mundo da vida, o mundo onde existimos cotidianamente.
Voltemos agora à nossa palavra: fraternidade. Vamos analisar sumariamente alguns possíveis usos dessa palavra no nosso vocabulário institucional. Podemos verificar que muitas vezes a palavra fraternidade é usada para designar um local físico de moradia, isto acontece, por exemplo, no endereçamento de envelopes: Fraternidade São Francisco, Rua 03 de outubro 1226, Assis, It.
Outras vezes a vemos ser usada para designar um grupo de pessoas que partilham algumas coisas, colocando-as em comum. Neste caso, fraternidade é sinônimo de comunidade. Em algumas Universidades são comuns as fraternidades de alunos, que vivem na mesma casa em regime comunitário. A designação de grupos humanos baixo o qualificativo de fraternidade não acontece apenas a nível local, é possível também encontrar macro designações, tais como fraternidade regional, nacional, internacional, etc.
É comum também usar o vocábulo fraternidade para designar as relações entre integrantes de um grupo de pessoas. Neste caso a fraternidade seria o vínculo entre as pessoas ou o espírito que mantêm as pessoas unidas umas às outras.
Agora temos condições de dar um passo adiante e propor-nos a pergunta que interroga pelo étimo da palavra fraternidade. É conhecido que esta palavra está formada de duas outras, a saber: frater, do Latim e idade, do Sânscrito. A palavra latina se traduz literalmente por irmão e numa tradução mais livre, também por irmã. O sufixo que provem do Sânscrito não tem uma tradução literal consagrada, normalmente é compreendido como um indicador de movimento, de dinamicidade. Neste caso, o sufixo idade agrega dinamismo e mobilidade ao substantivo frater.
Mas, de que tipo de movimento e dinamismo estamos falando? Será que um frater de agenda cheia, que passa todo dia em movimento de um lado a outro, dinamizando seu trabalho, está com isso gerando o fenômeno da fraternidade? Parece que o sufixo idade não se refere a este tipo de movimento.
O sufixo idade faz referência a um movimento que é constitutivo do frater. O frater é aquele que, para ser o que é, um frater, está constituído no modo da referência a outros. O frater, ou é frater de alguém ou não é frater. A fraternidade é o fruto maduro de um movimento de correlação que constitui a identidade do frater. É a dinâmica das correlações quem faz o frater. O frater não pode dar-se a si mesmo o ser frater, só a dinâmica das correlações pode conceder a alguém o ser frater.
Até aqui descobrimos que a fraternidade é essencialmente uma correlação vinculante que constitui em cada um o seu ser frater. Mas esta constatação ainda é muito genérica e com facilidade poderia terminar numa postura holística e universalista sem maior transcendência.
A correlação como dinamismo vinculante é necessária, mas insuficiente, para dar conta de explicar com maior profundidade o significado da palavra fraternidade. O frater não é frater só pela correlação com outros, o é também por uma relação com algo que transcende os correlatos. O movimento de correlação acontece ao redor de um núcleo gravitacional que tem o poder de atrair, relacionar e correlacionar.
Este núcleo gravitacional é o ideal, o objetivo, o sonho, o carisma, etc., quem tem o poder de atrair, de enganchar e de correlacionar as pessoas umas com as outras, de forma dinâmica, transformando cada uma em frater numa fraternidade.
A fraternidade é o fruto maduro do coração humano, que encantado e enganchado por um projeto de vida, se deixa correlacionar com outros na mesma situação e se dispõe a viver de forma dinâmica no seu dia a dia o ser frater.
Este núcleo gravitacional é uma força poderosa, que não só exerce uma sedutora atração, más também engancha aqueles que atrai e os lança, os arremessa uns na direção dos outros, os correlaciona para que se constituam frater de uma fraternidade. O dinamismo enunciado pelo sufixo idade tem uma fonte duradoura e inesgotável, voltar a esta fonte e deixar-se relançar, é o segredo para manter a vitalidade das correlações que transformam e mantêm uma pessoa como frater de uma fraternidade.
Se frater é irmão ou imã, então, concluímos que só é possível ser “irmão ou irmã de ... alguém”. Ninguém pode ser irmão ou irmã se não estiver correlacionado à outra pessoa. Ou somos irmão ou irmã de alguém ou simplesmente não somos nem irmão nem irmã. O ser irmão ou irmã fala do vínculo e não das pessoas. Fraternidade ou irmandade é um vinculo de correlacionamento dinâmico. Irmão e irmã não é um substantivo, nem nome próprio e nem adjetivo para as pessoas, mas é o nome daquilo que substantivamente acontece ou não entre as pessoas: a vinculação entre as pessoas em torno de um ideal.
Creio que já podemos responder a pergunta inicial. Na fraternidade, somo irmãos e irmãs de quem? Simples, somos irmãos e irmãs dos outros irmãos e das outras irmãs, correlacionados dinâmicamente uns com outros pela força gravitacional de um ideal que atrai, engancha e arremessa uns na direção dos outros.
Incorporemos agora um elemento novo. Francisco de Assis, não por poucas razões, é considerado o Irmão Universal, irmão de todos e de tudo. Na espiritualidade franciscana a fraternidade é radicalizada, desborda as possibilidades mesmas da palavra fraternidade.
A palavra fraternidade no idioma “franciscanês’ é um superlativo, é uma exacerbação, é exageradamente significativa. Tudo é irmão de tudo, nada fica de fora da fraternidade. Tudo e todos são correlatos de tudo e de todos. A fraternidade é universal, no sentido de que cabe dentro de si todo o universo como lugar da dinâmica das correlações. Se for assim, que tamanho tem a fraternidade? Não podemos saber, já que não sabemos que tamanho tem o universo.
Não sabemos que tamanho tem a fraternidade nem o universo, mas sabemos que no centro desta fraternidade e deste universo há um núcleo gravitacional irradiador que atraiu e fascinou Francisco de Assis. Enganchado por esta força Francisco foi lançado na direção de toda a obra da criação, se correlacionou de uma forma tão dinâmica com ela que pode cantar:

-Grande e poderoso e bom Senhor: * a ti toda glória e homenagem.
-Louvado sejas meu Senhor * por todas as tuas criaturas.
-Louvado pelo irmão, o sol * que marca os dias e clareia tudo
-É belo e de áureo fulgor * de tua grandeza uma imagem.
-Louvado pela irmã a lua * e as estrelas fulgurantes.
-Louvado pelo irmão o vento * e o ar e as nuvens alvinitentes.
-Louvado por nossa mãe, a terra * que nos sustenta com seus frutos.
-Louvai a Deus e agradecei – servi-o em grande humildade.

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