domingo, 19 de abril de 2009

O dom da Vocação: 800 anos depois

O átrio da Basílica Patriarcal de São Francisco de Assis guarda uma deslumbrante vista do vale em cujas ladeiras se encontra a cidade de Assis. Uma paisagem que convida a parar e admirar. Uma visão encantadora que excita de forma profunda a imaginação. Diante dos olhos se abre um abismo estético de extasiante beleza, que por um instante tem o fulgor da transfiguração do paraíso.
O jovem Francisco viveu e rolou por estas paragens cobertas por um verde vivo de brilho molhado. Esta beleza que faz vibrar os sentido e saltar a imaginação remete inevitavelmente a níveis de percepção mais profundos e mais elevados da realidade. A contemplação daquela efusiva beleza eleva o espírito e abre o caminho para a graça de Deus.
A graça de Deus toca o coração de Francisco de muitas formas. Na guerra tem que se decidir entre servir ao servo ou ao Senhor. Na prisão e na doença tem a oportunidade de se reencontrar de forma intensa consigo mesmo e com sua própria verdade. No ventre da terra teve a oportunidade de colocar o seu coração inquieto de molho no coração do seu Senhor. Todo o cosmos escutava contrito o seu ardente clamor: “Senhor, que queres que eu faça?”
Na capela de São Damião, lugar do cuidado dos Peregrinos, no silêncio da ruína e do abandono, encontra um Cristo crucificado de pé e com os olhos abertos. Este Senhor da prontidão e da lucidez que convida a uma fé erguida e desperta, lhe inspira o coração e a alma a se colocar em movimento e fazer algo para começar, ainda que seja empilhar pedras na forma de paredes.
O Evangelho da festa de São Matias lhe revela de modo certo e seguro a forma de ir pelo universo, sendo uma presença viva, intensa e consistente daquela beleza que já não é mais contemplada e daquele amor que já não é mais amado. Repleto de algo mais que ele mesmo Francisco exclama: é isto que estou procurando, é o que eu desejo e o que vou fazer de todo o coração.
A jovem Clara, beleza e amor no mesmo esplendor, aquela que antecedeu Francisco entre os leprosos, lhe revela que a presença e o cuidado são as pedras com as quais se constroem as paredes vivas da Igreja do seu Senhor. Foi ali que ele aprendeu o significado profundo do ser menor e do ser irmão.
Tocando seu violino de pau, domou os corações das feras e re-encantou o mundo. Pleno do seu Senhor, deixou-se rasgar no corpo e na alma. Parecido ao próprio Deus, cantou a reconciliação universal de todo cosmos com seu Criador.
Ao fazer memória do caminho que o levou do belo ao santo, Francisco atribui ao senhor todas as maravilhas que aconteceram na sua vida. Atribui ao Espírito do Senhor e o santo modo de operar todas as coisas que foram realizadas nele e por meio dele. O que chamamos de Testamento e que cremos foi deixado para nós como uma espécie de legado espiritual é, na verdade, uma grande prece de reconhecimento e de restituição àquele Senhor que a ele tudo concedeu.
O “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar” se apoderou do corpo, da vontade, do entendimento e da alma de Francisco. Nós legamos dele a recomendação textual e expressa de que devemos desejar o “Espírito do Senhor e seu santo modo de operar”. Desejar este espírito e o seu santo modo de operar é o nosso primeiro grande desafio ao celebrar a graça das origens e nela, a graça da vocação.
Não há possibilidade de renovar a nossa vida franciscana sem desejar ardentemente o “Espírito do Senhor e seu santo modo de operar”. O verbo é desejar. O verbo não é pensar, nem receber, nem possuir. O nosso verbo é desejar, na voz ativa, e ser possuído, na voz passiva, pelo “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar”.
É o “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar” quem fará algo em nós, fará algo conosco e fará algo por nosso intermédio. A nosso chamado vocacional não é obra nossa, mas é obra deste Espírito em nós.
Como em Francisco o espírito pode operar muitas maravilhas em nós e entre nós. Pode fazer que nos encontremos em meio de tantos desencontros; que falemos a mesma língua, cultivemos os mesmo sentimentos e nos re-encantemos pelos mesmos ideais; que mutuamente, nos acolhamos, nos escutemos, nos animemos e nos ajudemos; que nos sintamos, uma vez mais, chamados e enviados como irmãos universais de todas as criaturas.
Na liberdade temos que fazer a nossa escolha. Temos que proclamar, como Francisco, ao ouvir o Evangelho, o que realmente buscamos, desejamos e queremos fazer de todo o coração. Realmente buscamos e desejamos o “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar”?
A resposta a esta pergunta é muito importante. Só possuídos pelo “Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar” poderemos, como Francisco, fazer aquela pergunta derradeira: “Senhor, que queres que eu faça?”
O Senhor respondeu a Francisco: vai Francisco, restaura o que iniciei. Volte uma vez mais às origens, à inspiração original e originária. Ao deixar para nós a recomendação de nunca abandonar Santa Maria dos Anjos da Porciúncula, o lugar da intuição e da origem da nossa vocação e da nossa vida, Francisco nos faz partícipes e continuadores daquele chamado de volta às origens, dirigido a ele pelo Senhor. Ser Frade Menor é estar comprometido com uma permanente volta às origens.
A volta às origens é penosa, é como caminhar ao cair da tarde de inverno, no entanto, só ela pode proporcionar a verdadeira e perfeita alegria. Toda vez que a tarde anuncia a chegada das trevas e o inverno se sente mais frio e impiedoso, é chagada a hora, uma vez mais, de empreender o caminho de volta a Santa Maria dos Anjos da Porciúncula.
Para empreender esta volta incessante às origens Francisco se coloca a caminho e neste caminhar que faz caminho para outros caminharem, o Senhor lhe concedeu a Francisco o Seu tão desejado “Espírito e seu santo modo de operar”; concedeu-lhe iniciar uma vida de penitência pelo reconhecimento de que estava em pecado e não conseguia encarar a sua realidade própria e os seus temores; concedeu-lhe ter misericórdia consigo mesmo e com todos, convertendo-se na compaixão encarnada; concedeu-lhe Sua mão e sua guia para enfrentar de pé e de olhos abertos tudo o que lhe afligia o coração; concedeu-lhe que aquela realidade vivenciada como amarga se convertesse em fonte de doce crescimento humano e espiritual e por fim, concedeu-lhe a estatura de homem de Deus e de Irmão universal.
E nós, que estamos hoje aqui? O que estamos esperando olhando para o céu, como os discípulos no Evangelho da Ascensão? O que estamos fazendo no alto deste monte de sete alegrias, acomodados dentro de nossas tendas vivendo da gloriosa memória daqueles que viveram o que nos prometemos?
A graça das origens, e nela, a graça da vocação, aponta para fora das tendas e para baixo. Aponta para a saída de si e para o movimento de ir ao encontro de quem necessita ser encontrado, acolhido, escutado e cuidado.
Para isto fomos chamados e para isto fomos enviados, a fim de que, pela nossa presença, o mundo seja diferente. Somos chamados a curar os coxos, os mudos e os surdos.
Os coxos são aqueles que não tem quem os acolha, por isso não têm para onde caminhar, estão paralisados. Abramos os nossos braços e todos os paralíticos se levantarão, tomarão o seu leito e caminharão milagrosamente em nossa direção para serem acolhidos.
Os mudos são aqueles que ninguém escuta, por isso estão emudecidos, não falam. Abramos os nossos ouvidos e milagrosamente todos os mudos começarão a falar e contar as suas histórias.
Os surdos são aqueles com quem ninguém fala, por isso não podem escutar. Abramos nossas bocas e deixemos que o “Espírito do Senhor e o santo modo de operar” coloque em nossos lábios palavras de consolo, de ânimo e de esperança para acariciar os ouvidos dos corações abatidos dos filhos deste século.
Como podemos ver, estes milagres estão ao nosso alcance. Através deles poderemos colocar a nossa pedra viva para construir, já neste mundo, uma antecipação daquilo que Deus reserva a todos os homens e mulheres de boa vontade de todos os tempos e todos os lugares.
São Francisco fez a parte dele, que Deus nos conceda discernir e fazer a nossa parte.

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